PROBLEMÁTICA PROPOSTA, OBJETIVOS DO TEXTO E METODOLOGIA UTILIZADA
Este texto coloca em debate duas posições jurídicas antagônicas:
a) Uma é a ideia de que tratamentos estéticos são tratamentos não essenciais, sobre os quais não existiria dever jurídico do Estado ou das prestadoras de planos de saúde de custear esses serviços.
b) A outra se relaciona com o dever constitucional de preservação da saúde, direito esse que precisa ser “garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (CF, artigo 196). O direito à saúde é uma consequência lógica do direito fundamental à vida, tornando o debate juridicamente relevante, eis que toda discussão versa, em última análise, sobre a abrangência constitucional de importante fundamento da República Federativa do Brasil (CF, artigo 5º).
A principal questão aqui travada perpassa por uma análise sobre o significado do termo “saúde” e sua relação com o signo “vida”, ambos conceitos jurídicos da mais alta relevância. Também, fará parte deste debate o significado do termo “estética”, historicamente associado à ideia de “belo”, de “sensibilidade” e até pejorativamente ligado a “não essencialidade”, ou simplesmente “futilidade”. A partir, levantam-se duas hipóteses: a) ou a estética tem a ver apenas com o fútil – e com isso os tratamentos estéticos não deverão ser custeados pelo Estado, exatamente porque não guardam relação com o signo “vida” – ou, b) esse termo se encontra intimamente ligado ao significado de saúde, derivando a necessidade de repensar o modelo de Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS) para que tratamentos estéticos sejam oferecidos e custeados pelo Estado, bem como para que eles sejam incluídos nas mensalidades pagas pelos usuários de planos de saúde privados.
O tema é bastante polêmico e ele certamente remeterá a leitura de outros textos paralelos, alguns de natureza puramente filosófica. Isso decorre do fato de que a discussão sobre a estética é bastante antiga. Essa temática não se apresentou de forma consensual e desde sua origem vem tocando o pensamento crítico de filósofos como Platão, Plotino, Aristóteles, Hume e Kant. Como a intenção deste texto não é exatamente percorrer a construção histórica do conceito de estética ou de estudar esse signo doxograficamente, as paradas históricas serão pessoais e estratégicas. Para que se possa travar o debate, trazendo o problema de pesquisa para perto das discussões, este texto utilizará como metodologia um procedimento bastante comum entre as pesquisas jurídicas: a revisão de literatura. A revisão de literatura permite tratar a polêmica levantada a partir de fundamentos jurídicos evidentes, tais como a legislação, as normas da Agência Nacional de Saúde – doravante apenas “ANS” – a Constituição Federal e alguns precedentes judiciais estrategicamente escolhidos. A partir desses fundamentos, este texto procurará se posicionar, deixando outras questões que devem ser respondidas enquanto consequências do presente trabalho.
O texto será dividido em quatro tópicos, os quais trazem argumentos que se relacionam e que aqui se encontram separados apenas para ajudar na análise pretendida. O primeiro é este, no qual o problema, as hipóteses, os objetivos e a metodologia se encontram declaradas. Nos dois tópicos seguintes, pretende-se verificar os argumentos que sustentam tanto a tese da estética como futilidade (2), quanto à tese contrária, de que estética é saúde (3). Ao final, o quarto tópico trará as conclusões e a colocação de novos (e outros) problemas que se impõem diante das conclusões (parciais) que o texto pode chegar.
A TESE DA ESTÉTICA COMO FUTILIDADE: A RELAÇÃO ENTRE ESTÉTICA E | 77 FUTILIDADE VEM DESDE PLATÃO, ENCONTRANDO-SE EM LEIS BRASILEIRAS
A associação dos termos “estética” e “futilidade” é bastante antiga, embora não seja algo consensual entre filósofos. Essa associação talvez represente um desses desvios semânticos que a história da linguagem nos demonstra, como ocorreu com a palavra “retórica”. A retórica era, primeiramente, uma arte da discussão, qual depois foi reduzida ao estudo das figuras de linguagem (schematta), das metáforas, e daí advir a ideia de futilidade. Atualmente não se concebe mais a ideia de que retórica se revele apenas como um estudo das figuras de palavras; nem muito menos que as figuras de palavras – cujo representante mais expoente é a metáfora – sejam puramente adereço ornamental. Aldo de Lima (2006) consegue visualizar um traço cognitivo da metáfora, despertando um valor de conhecimento para além da característica ornamental.
Paul Ricouer (2005, p. 81) já ensinava: “Que a metáfora nada ensine e não sirva senão para ornar o discurso, estas duas asserções procedem, pouco a pouco, da decisão inicial de trata-la como uma maneira insólita de designar as coisas”. Na mesma esteira de raciocínio, tratar a estética como futilidade é opção. Esse é o ponto de partida deste capítulo segundo, ou seja, a tese de que estética e futilidade é uma opção semântica possível.
Essa tese afasta o termo saúde do conceito de estética. Vai-se dizer que saúde é a ausência de doença, e doença a ausência de saúde. Apesar de cíclicos e vagos, esses conceitos dominaram a medicina e a filosofia da medicina, guiando as pesquisas e o desenvolvimento da ciência medicinal por vias reducionistas e mecanicistas. Esse modelo, inspirado em trabalhos de Galileu Galilei, Isaac Newton e René Descartes, foi importante pelo desenvolvimento de três postulados:
a) Os sistemas corporais funcionam em sua totalidade, mas é possível uma análise sobre o funcionamento das partes desse sistema;
b) As doenças podem ser catalogadas e classificadas graças ao estudo de sintomas (sintomatologia), substituindo o individualismo pelo universalismo (ou generalismo), modelo capaz de guiar pesquisas farmacológicas para soluções mais abrangentes e menos idiossincráticas;
c) Aspectos morais, sociais ou comportamentais são desprezados devido a sua variabilidade e impossibilidade de serem estudadas eficientemente. Esse modelo, conhecido como “modelo biomédico”, segundo Albuquerque e Oliveira (2002, p. 20):
[…] respondeu às grandes questões de saúde que se manifestavam na época, definindo a teoria do germe. Esta, dentro do espírito cartesiano, postulava que um organismo patogénico específico estava associado a uma doença específica, fornecendo assim as bases conceptuais
necessárias para combater as epidemias.
O modelo biomédico se baseia na visão cartesiana do mundo, considerando a doença como uma avaria do sistema de caráter temporário. Os tratamentos médicos seriam procedimentos positivamente classificados e anteriormente testados capazes de trazer a cura ao doente devolvendo-lhe a condição de pessoa saudável.
O artigo 196 da Constituição Federal de 1988 trata a saúde como “direito de todos e dever do Estado”. Estipula, ainda, que a “assistência a saúde é livre à iniciativa privada”, exigindo a criação das Leis do Sistema Único de Saúde (Leis nºs 8.080 e 8142, ambas de 1990), e a Lei dos planos e seguros privados de assistência à saúde (Lei nº 9.656/98).
Enquanto direito público, os tratamentos de saúde e os limites da atuação do estado precisariam se encontrar estipuladas em lei – numa expressão do princípio da legalidade.
Nesse sentido, a Lei 9.656/98, no artigo 10, instituiu:
[…] o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto:
I – tratamento clínico ou cirúrgico experimental;
II – procedimentos clínicos ou cirúrgicos para fins estéticos, bem como órteses e próteses para o mesmo fim;
III – inseminação artificial;
IV – tratamento de rejuvenescimento ou de emagrecimento com finalidade estética;
V – fornecimento de medicamentos importados não nacionalizados;
VI – fornecimento de medicamentos para tratamento domiciliar;
VII – fornecimento de próteses, órteses e seus acessórios não ligados ao ato cirúrgico.
Ao criar o plano-referência, a legislação deixou claro que procedimentos clínicos ou cirúrgicos para fins estéticos, e tratamentos para rejuvenescimento ou de emagrecimento com finalidade estética não estão incluídas no contexto dessa lei.
Os planos de saúde precisam cobrir tratamentos de doenças – essas assim definidas na Classificação Internacional de Doenças (CID) – numa clara vinculação do direito fundamental à vida a uma positivação anteriormente estabelecida.
A toda evidência opera-se, atualmente, uma verdadeira reviravolta no conceito de saúde. Nessa turn health que ocorre depois da criação da Organização Mundial de Saúde (OMS), os fatores externos desprezados pelo modelo biomédico voltam à tona, sendo considerados elementos componentes do conceito de saúde. Como destaca Nicola Abbagnano, “A situação hoje está mudando graças sobretudo ao desenvolvimento da bioética, que leva a filosofia a tratar de questões terapêuticas (p.ex., a obstinação terapêutica) e da morte (p.ex., a eutanásia)” (2007, p. 344).
A TESE DE QUE ESTÉTICA É BEM-ESTAR, E CONSEQUENTEMENTE DEVER JURÍDICO DO ESTADO
Apesar de no Brasil ainda vigorar a ideia de que saúde e doença são termos equivalentes enquanto antônimos, e de que as doenças são aqueles sintomas positivados graças a uma classificação internacional, mudanças conceituais são verificadas ainda que timidamente.
Nicola Abbagnano (2007, p. 344) sentencia que “não é cabível um conceito biológico redutivista da saúde, mas sim uma ideia de doença como expressão significativa da situação existencial do homem”. E acrescenta que a doença enquanto problema filosófico, “suscita interrogações no plano antropológico e ético e constitui um dos argumentos mais debatidos da filosofia da medicina”.
Dessa forma, nem doença é tão somente aquele conjunto de sintomas positivados numa classificação internacional, nem bem-estar envolve manifestações estritamente clínicas ou médicas. Essa mudança de pensamento representa uma volta ao conceito de saúde estabelecido em Hipócrates e Paracelso, para os quais a cidade e o meio ambiente | 79 influenciam a saúde das pessoas, e são agentes significativos para a influência do bem-estar de toda população (SILVA, 2011, p. 9-10).
Bem-estar e ausência de doença são elementos do conceito de saúde na atualidade, que se complementam notadamente após a segunda guerra mundial e, sobretudo pelos incidentes decorrentes da Revolução Industrial ocorridos na segunda metade do século XX. A criação da Organização Mundial de Saúde é importante para se estabelecer uma definição mais completa de saúde. No preâmbulo da Constituição da OMS se afirma que “a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”. A mesma Constituição estabelece ainda três outros primados fundantes da OMS:
a) A extensão a todos os povos dos benefícios dos conhecimentos médicos, psicológicos e afins é essencial para atingir o mais elevado grau de saúde;
b) Uma opinião pública esclarecida e uma cooperação ativa da parte do público são de uma importância capital para o melhoramento da saúde dos povos;
c) Os Governos têm responsabilidade pela saúde dos seus povos, a qual só pode ser assumida pelo estabelecimento de medidas sanitárias e sociais adequadas.
Segundo se depreende desses postulados, não apenas os conhecimentos médicos e psicológicos garantem o bem-estar, mas qualquer outro pode contribuir para o estado de bem-estar. Os conhecimentos e as técnicas estéticas contribuem ativamente para o estado de bem-estar. É importante uma opinião pública esclarecida, capaz de problematizar a atuação do estado, e a responsabilidade pelo dever de prestar condições de saúde a toda população, por meio de medidas sanitárias e sociais adequadas.
A busca por um corpo humano belo e saudável é uma realidade no atual momento histórico. Tem-se construído jurisprudência pelos Tribunais no sentido de dar provimento a pleitos fundamentados no dever do plano de saúde de cobrir despesas em casos clinicamente comprovados de moléstia grave, ainda que o procedimento possa parecer ser estético.
No julgamento do Recurso Especial nº 1.175.626, os ministros integrantes da quarta turma do STJ destacaram que a gastoplastia (cirurgia bariátrica), indicada como tratamento para obesidade mórbida, revelasse um procedimento essencial à sobrevida do paciente.
No Poder Judiciário já se encontram precedentes de liminares concedidas por magistrados determinando que o Poder Público realize cirurgia de mudança de sexo (TJSP, março, 2013). O Tribunal Regional Federal da 4ª Região já possui precedente histórico em que determina que o Sistema Único de Saúde realize a intervenção cirúrgica, julgando procedente a Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal obrigando o Estado a realização da cirurgia de mudança de sexo (TRF4R, AC 2001.71.00.026279-9/TRF, 2007). O argumento da suspensão dessa decisão pelo Supremo Tribunal Federal não discutiu a desnecessidade da intervenção cirúrgica, mas argumentou com base no princípio da reserva da possível (STF, 2007).
Esses são alguns exemplos de que uma interpretação extensiva certamente colocará os tratamentos estéticos como extensões do direito fundamental à saúde, corolário do direito à vida. A linha divisória que se impõe não é aquela do que é estético ou não estético, mas do que é essencial ou não essencial. Se um tratamento estético for essencial, ele não pode ser negado por planos de saúde ou pelo governo, pois equivaleria a negar o bem-estar individual, e consequentemente o direito fundamental à saúde do indivíduo.
Se um jurisdicionado consegue na justiça hoje uma intervenção cirúrgica para realizar uma gastoplastia, os tribunais têm mantido entendimento de que tratamentos posteriores àquele tratamento principal devem ser realizados como consequência médica. O excesso de pele precisa ser removido após intervenção bariátrica, como pode ser verificado na decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
DIREITO DO CONSUMIDOR. PLANO DE SAÚDE. NEGATIVA DE COBERTURA DE CIRURGIA PLÁSTICA REPARADORA. Ação de obrigação de fazer, cujo pedido é cumulado com o de indenização por danos morais. Autora que necessita submeter-se a cirurgia plástica reparadora para a retirada de excesso de pele, em decorrência de anterior cirurgia bariátrica. Administradora de plano de saúde, que nega cobertura à realização do procedimento. Relação de consumo. Aplicação da Lei nº. 8.078, de 1990 (CDC). As cláusulas contratuais devem ser interpretadas da forma mias benéfica para o consumidor, sobretudo as limitativas de direitos, consoante preconiza o art. 47, do CDC. Incidência do verbete sumular nº nº 258, deste Tribunal de Justiça, segundo o qual “a cirurgia plástica, para retirada do excesso de tecido epitelial, posterior ao procedimento bariátrico, constitui etapa do tratamento da obesidade mórbida e tem caráter reparador”. Falha na prestação do serviço geradora de dano moral. Verba indenizatória fixada proporcionalmente ao fato e respectivo dano. Negativa de seguimento de ambos os recursos, com base no caput do artigo 557, do Código de Processo Civil. (TJ-RJ – APL: 839885920108190002 RJ 0083988-59.2010.8.19.0002, Relator: DES. DENISE LEVY TREDLER, Data de Julgamento: 13/07/2012, DECIMA NONA CAMARA CIVEL) Intervenções cirúrgicas exigem tratamentos pós e até pré-operatórios que se não forem condizentemente realizados por profissionais devidamente habilitados, põem em risco a saúde do paciente. Alguns recursos estéticos atuam prevenindo a formação de aderências que impedem o fluxo normal de sangue e linfa, causando agravamento num quadro pós-cirúrgico que retardará a recuperação eficiente do paciente. A realização do tratamento de drenagem linfática ajuda na desobstrução de um quadro endomatoso, auxiliando a formação do tecido cicatricial. A massoterapia ajuda no pré-operatório, revelando-se tratamento bastante eficaz para preparar o paciente que se submeterá a uma intervenção cirúrgica, além do que massagens aliviam o local do corpo que sofreu rupturas devido a tratamentos invasivos.
A utilização de técnicas e de procedimentos estéticos em pacientes submetidos a intervenções cirúrgicas, comprovadamente contribuem eficazmente para recuperação do quadro clínico. Além do que desempenham papel relevante sob o ponto vista psicológico, contribuindo para o estado de bem-estar.
Assim, dizer simplesmente que os tratamentos estéticos são tratamentos não essenciais e até fúteis – não condiz com o conceito moderno de saúde, já que saúde não representa apenas uma ausência de doença, mas um quadro de bem-estar psicológico e social.
A Teoria da Responsabilidade Civil impõe o dever de indenização por danos estéticos.
Se fosse verdade que estética é o mesmo que futilidade, ou puro adereço ornamental dispensável, as decisões condenatórias que os tribunais estão proferindo perderiam parte de legitimidade, estariam condenando pessoas a indenizar futilidades?
Num mundo em que os padrões de beleza encontram-se positivados, e influenciam no sucesso das pessoas dentro da sociedade, há uma relativização da ideia de estética como puro ornamento pessoal. No início da renascença os padrões de beleza da mulher eram outros em relação aos padrões de hoje.
Como salientam Antoine Prost e Gérard Vincent (2009, p. 284), A história do corpo da “bela mulher” não se reduz a uma trajetória que partiria do gordo para chegar ao magro. É verdade que todas as sociedades nutridas admiram a obesidade e André Burguière observa que, nas cidades italianas da Idade Média, popolo grasso designava a | 81 aristocracia dirigente e popolo magro designava a plebe.
Atualmente, a mulher esguia e alta se constituiu num símbolo de beleza e objeto de fascínio de homens e de outras mulheres. Para Pierre Bourdieu (1977, p. ?):
O corpo se torna objeto de uma luta que tem como finalidade a aceitação da condição de domínio (aquele que submete seu corpo ao olhar de outrem) e a integração na sociedade. Essa luta, visando a impor normas de percepção do grupo dominante, identifica-se com a luta de classes na medida em que trata de impor as características de um grupo, depois de legitimadas e reconhecidas como exemplares.
Daí a necessidade de se pensar se ao estado não caberia à cobertura e oferta de tratamentos estéticos para atingir esse objetivo-corpo-belo que se impõe como norma social vigente na sociedade brasileira.
CONCLUSÕES: ESTÉTICA COMO DIREITO HUMANO, E AS VÁRIAS CONSEQUÊNCIAS DECORRENTES DESSA INTRINCADA RELAÇÃO
Este texto não termina aqui. As várias discussões que podem surgir a partir das colocações e dos problemas que foram levantados provocam debates em círculos jurídicos,
médicos, filosóficos, antropológicos e sociais. Esse é o intuito subliminar deste trabalho: provocar debates.
Se no conceito de saúde admitido após a constituição da Organização Mundial de Saúde não cabe apenas uma ideia oposta (=doença), mas também tudo que signifique ou que venha a significar bem-estar, a discussão de que tratamentos estéticos são importantes e que eles devem ser suportados por planos de saúde e pelo próprio governo é um debate profícuo e bastante rico.
Certamente os advogados públicos argumentarão a reserva do possível, princípio confuso cuja aplicação é sempre reivindicada quando a sociedade procura exercer direito
fundamental (difuso, coletivo ou individual homogêneo).
O texto duvida da capacidade legislativa de normatizar todas as situações em que o estado e os planos de saúde podem atuar, negando qualquer ação que esteja previamente estipulada em classificações. Esses catálogos de doenças baseiam-se em sintomatologias coletivas, são incapazes de enxergar a pessoa na sua individualidade, além de se embasaram no modelo biomédico de saúde que não encontra mais espaço para vigorar.
Somente o médico pode dizer se determinado tratamento estético é essencial ou não essencial, analisando cada caso e diante da realidade contextual de cada paciente. Se o médico declarar que determinado tratamento pré ou pós-operatório é necessário, os meios jurídicos devem se curvar diante dessa afirmação e tutelar o interesse do paciente que possui direito fundamental à saúde e à vida.
O limite ético para a declaração do médico de que o tratamento estético é necessário encontra-se determinado pelo Código de Ética da Medicina que pune as declarações falsas prestadas por médicos. Fora do contexto da ética dos médicos, a discussão jurídica estará limitada a incidência do direito á vida, o qual, como direito fundamental é um dos mais importantes direitos garantidos ao homem no Brasil e nas ordens jurídicas internacionais.
Hoje no Brasil já se formam técnicos (nível médio) e tecnólogos (nível superior) em estética e cosmetologia que são capazes de realizar tratamentos com prescrição médica e que precisam ser recrutados pelo serviço público, já que esses serviços e tratamentos somente estão disponíveis privativamente para classes mais abastadas. Indubitavelmente que essa situação fere o princípio da igualdade e o princípio da dignidade da pessoa humana, princípios fundamentais da República Federativa do Brasil.
REFERÊNCIAS
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CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. São Paulo: Saraiva, 2013.
LIMA, Aldo. Metáfora e cognição. Recife: EdUFPE, 2006.
PROST, Antoine; VICENT, Gérard. História da vida privada: da primeira guerra aos nossos dias. Tradução de Denise Bottmann. V. 5. São Paulo: Schwarcz, 2009.
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SILVA, Leny Pereira da. Direito à saúde e o princípio da reserva do possível. Monografia apresentada no Curso de Especialização em Direito Público. Brasília: Instituto de Direito Público, 2011.
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TRF4R, AC 2001.71.00.026279-9/TRF, 2007.
POSTADO POR: PROF. DR. JOÃO CLÁUDIO CARNEIRO DE CARVALHO